Desde os primórdios da humanidade, o livro tem sido um instrumento de grande relevância para a vida humana. Todas as grandes religiões têm seus livros e eles ajudaram a moldar várias civilizações. O livro mais lido e comercializado de todos os tempos é a Bíblia. Ela é o maior best-seller da história e, certamente, o escrito que mais influenciou a civilização humana.
Entretanto, assim como o livro pode ser um instrumento de melhoria e progresso da humanidade, também pode trabalhar no sentido contrário. Todos já tiveram uma experiência de, após ler um livro, se sentirem mais animados para enfrentar as lutas e dificuldades da vida. Mas acredito também que muitos sentiram exatamente o oposto após a leitura de certos livros.
Textos bem escritos mexem com nossas emoções e pensamentos. Eles têm o poder de tocar em pontos obscuros da nossa imaginação e da nossa vida. Uma cena erótica descrita com detalhes tem o mesmo poder de agitar intimamente uma pessoa quanto se a cena estivesse sendo assistida ao vivo. O mesmo pode ser dito em relação à violência. Talvez, por isso, tantos livros têm apelado em demasia para erotismo e violência. Isso vende na mesma proporção que livros de autoajuda.
Com o advento da chamada “pós-modernidade” percebe-se que os tons de cinza começam a dominar a literatura. Grosso modo, é possível dizer que, no passado, os livros expunham mais a realidade em “preto e branco”. Mais uma vez recorro aos clássicos da ficção fantástica como Dante, Bunyan, Milton e os modernos Lewis e Tolkien. O que há em comum nessas obras? Que o bem e o mal existem e são realidades opostas e verificáveis. Ou seja, a verdade está oposta ao erro, e isso é verificável e absoluto. Essas obras buscavam um ideal, tentavam expor um ideal, tinham esperança de que havia algum sentido para a existência, e, através das grandes cenas e batalhas épicas, buscava-se o sentido do verdadeiro heroísmo e da coragem, e que devolvesse ao ser humano o próprio sentido de “ser" humano.
Algo mudou no século 20. As obras foram se tornando nebulosas. Bem e mal trocam facilmente de lugar. A verdade não existe, é só um ponto de vista. Os absolutos derreteram. Há um desespero que emerge dessas obras, uma noção de que a vida é inútil, sem sentido, de que não há futuro, apenas o presente e, portanto, de que não há leis ou regras e tudo é permitido. O prazer, a conquista, o sobrepujar os outros se tornam os ídolos da existência. O personagem Ivan Karamazov, provavelmente, foi quem disse isso de modo mais memorável na história da literatura: “se Deus não existe, tudo é permitido”.
Num certo sentido, porém, essa literatura “cinzenta" é mais verdadeira do que a antiga do “preto e branco”. Refiro-me ao fato de que o espírito humano falível e a decadência resultante são mais evidentes nessas obras do que naquelas. Porém, o que se vê em muitos romances atuais é um hiper-realismo, resultado provavelmente da mídia. A descrição que a televisão faz da realidade é sempre focalizada e, por sua vez, exagerada. Quando assistimos a um programa policial, ficamos com a impressão de que todo mundo está matando todo mundo pelas ruas. Alguns livros só conseguem descrever o que há de pior no ser humano, e deixam o leitor com a impressão de que essa é a única realidade, e mais do que isso, a estimulam. O mundo do século 20 para cá se tornou um mundo demasiado pessimista, relativista e sínico. E a literatura atual reflete demasiado esses pontos de vista, bem como os incentiva. Mas quem disse que isso está certo? Que essa é a única realidade?
O que fazer então? Voltar ao preto e branco, ou seguir com o cinza? E por que não todas essas cores? Sim, há aspectos da vida humana que são mesmo cinzentos. Talvez, porque o bem e o mal coexistam no ser humano como resultado de sua origem e sua queda. É possível, portanto, que uma obra mantenha os conceitos absolutos do bem e do mal, do certo e do errado, da verdade e do erro, mas, ao mesmo tempo, mostre a realidade terrena repleta de conflitos e desentendimentos. Assim, o desespero se fará notado, mas acima dele estará a esperança.
Todo escritor, antes de começar a escrever, deve ter algumas coisas bem claras para si mesmo. Seguem duas dicas:
- Escreva pensando na contribuição que pode dar às pessoas, e não nos elogios ou lucro que possa obter disso. Sei que isso soa estranho para muitos, algo até demagógico, mas o fato é que o mais bem sucedido escritor conseguirá elogios proporcionais às críticas, e se ele não tiver muito claro para si as razões pelas quais escreve, provavelmente desistirá.
- Cuide para que, o que você escreve, ao invés de ajudar as pessoas, não as lance ainda mais no desespero. Já há coisas ruins demais no mundo, que contribuem para os vícios, para a degradação da vida humana, para a falta de sentido da existência. Evidentemente uma ficção precisa ter compromisso com a realidade, caso contrário vai ser algo meio sem pé nem cabeça, ou seja, deve descrever a vida como ela é, porém não precisa torná-la pior do que já é.
Ou seja, o livro, a literatura é um dom precioso para a humanidade, mas que, como quase todas as coisas, pode ser usado para bem ou para mal.
L. L. Wurlitzer